A partir de novembro, o Sesc São Paulo inicia o projeto “Lugar de Jogo” que reúne as interfaces dos videogames, das artes e da cultura pelo viés da pluralidade de narrativas desenvolvidas sob o olhar da diversidade. Com curadoria de Tainá Felix e Jaderson Souza, da Game Arte, a programação conta com um ciclo de debates pelo Centro de Pesquisa e Formação, entre os dias 17 de novembro e 1º de dezembro, e conteúdos disponíveis nas plataformas do Sesc Digital, com jogos para download, sob produção do Sesc Avenida Paulista. Todas as atividades são gratuitas e em ambiente virtual.
Mensalmente, quatro jogos estarão disponíveis para download gratuitamente através da plataforma Sesc Digital.
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Editorial
Por Jaderson Souza e Tainá Felix
Compreendendo o jogo como um suporte de transmissão de cultura, tal como o fazem o livro, o álbum musical ou o espetáculo de teatro, apresentamos a curadoria Lugar de Jogo, da plataforma Sesc Digital.
Trata-se de uma oportunidade ímpar, que abre precedentes para novos meios não hegemônicos de circulação de cultura através dos videogames enquanto dimensão sociológica.
Durante o passar dos anos, pudemos observar uma grande ruptura entre conhecimentos considerados acadêmicos e saberes oriundos da experiência estética. Se, por um lado, o conhecimento acadêmico deixa de validar a oralidade por ausência de método, o senso comum se afasta cada vez mais da academia por conta de elitismos e do distanciamento entre linguagens.
Entretanto, ao edificarmos um percurso interdisciplinar que busca a compreensão de fenômenos a partir de pontos de vista diversos - academia e oralidade -, passamos a enxergar potências que podem ser apreendidas a partir de ambas as linguagens.
É assim que viemos parar aqui. Por um lado, acreditamos na ciência como um dos alicerces essenciais para compreendermos o mundo. Por outro, a experiência estética nos permite abarcar a grande complexidade que o mundo nos apresenta. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam.
Desde sua concepção, os jogos digitais podem ser tomados enquanto objetos capazes de transmitir cultura. Por exemplo, conhecidas franquias de jogos digitais apresentam universos de mitologia, ficção, ou até mesmo tarefas do dia-a-dia reescrita através de mecânicas de jogo.
Compreendem-se os jogos digitais como espaço potente de produção de conhecimentos. Saberes não somente factuais, mas saberes vivos. Experiência estética, capaz de tocar as pessoas, provocar sensações, suscitar pensamentos.
Após mais de uma década realizando atividades culturais e pesquisas acadêmicas, é desta forma que continuamos a enxergar os jogos digitais: como potência. Potência para se contar histórias, construir experiências, documentar a cultura, fomentar práticas, expressar-se.
Não é novidade que grandes videogames conseguem reproduzir e ratificar costumes vindos de diversos lugares do mundo. Além de orçamentos milionários, há todo um ecossistema que fomenta o consumo e a produção de jogos digitais.
Contudo, não podemos generalizar este cenário. Neste momento, mais do que reafirmar a cultura dos jogos enquanto fenômeno potente, surge um novo questionamento:
De quem é o Lugar de Jogo?
Apesar de vivermos em tempos de abundantes tecnologias digitais, o poder da retórica ainda permanece como um grande privilégio epistêmico. Trata-se da capacidade e oportunidade de contarmos as nossas histórias a partir de nossos próprios pontos de vista. Trata-se de quem pode ser escutado.
Para se ter uma ideia, no segundo censo da indústria brasileira de jogos digitais, de 2018, apenas 10% dos desenvolvedores se declaram como negros ou afroamericanos, e 0,9% indígenas. Tendo os menores escores, a população transgênero declarada no censo aponta apenas para 0,4% dos participantes.
Lugar de Jogo está intimamente ligado ao privilégio epistêmico. Assim como qualquer linguagem, a produção de um game requer uma série de aprendizados teóricos, técnicos e práticos. Solicita empenho e bastante dedicação, fator nem sempre possível diante de contextos sociais vividos pela maioria da população brasileira.
Ao mesmo tempo em que se constatam tais fatos, o fomento e construção de novos caminhos é fundamental para que mais pessoas possam contar suas próprias histórias.
Há de se tomar certos cuidados. Não se trata da construção de mais espaços a partir das mesmas lógicas de mercado, ou seja: consumir cada vez mais, hierarquizar através da competição acirrada, homogeneizar a produção com base na lógica eurocêntrica. Ao contrário. Estas possibilidades, quando pensadas a partir das chamadas epistemologias do Sul Global, podem abrir novos espaços de escuta em nossa sociedade.
Lugar de Jogo não hierarquiza as obras. Todos os jogos que fazem parte desta curadoria são apresentados da mesma maneira e possuem as mesmas possibilidades de exposição. A parceria com coletivos e estúdios se dá através das mesmas condições para todos os participantes.
Isto não significa a presença de uma unidade em comum às obras. Ao contrário. Levando-se em conta as peculiaridades de cada grupo desenvolvedor, suas potências e dificuldades são parte fundamental da exposição. Ao mesmo tempo, Lugar de Jogo busca construir um espaço pautado na diversidade cultural dos grupos e também do conteúdo das obras.
Buscando questionar as condições nas quais os jogos são construídos, a curadoria observa as condições de trabalho realizadas pelos grupos. Cada grupo traz circunstâncias de desenvolvimento e circulação diferentes. Tais condições podem reverberar nas obras, trazendo formas de expressão que são como são.
Em outras palavras, nem sempre um conteúdo gráfico ou de jogabilidade irá se assemelhar com o que já estamos acostumados a ver nas lojas virtuais de jogos. Ao expor trabalhos que demonstram um estado técnico diferente do “esperado”, propomos à você, jogadora, jogador e jogadore, que pense sobre as pessoas que constroem os videogames e sobre a forma com que enxergamos conteúdos culturais.
Florescer, jogo desenvolvido pelo coletivo PugCorn (São Paulo)
Usar ao invés de consumir. Nas palavras de Hannah Arendt, buscamos trazer em Lugar de Jogo um questionamento ao modo com que acessamos o conteúdo dos jogos. A grande abundância trazida pela replicabilidade no meio digital faz com que os games se tornem objetos de consumo. Indagando a cultura de massa, que cada vez mais induz a compra acelerada, sugerimos que os jogos desta mostra sejam jogados em todos os seus detalhes.
Lugar de Jogo implica descentralização. A pesquisa foi realizada através de plataformas digitais já conhecidas, e também contou com fontes que trouxeram jogos não publicados nestas plataformas. Durante o processo, tivemos contato com coletivos de diversos lugares do país, buscando desenvolvedores e descobrindo pólos de desenvolvimento muito interessantes.
Lugar de Jogo é lugar de fala. A fim de potencializarmos a experiência, não poderíamos esquecer de um ponto fundamental: a mediação. Diante de uma curadoria 100% digital, o desafio fica por conta da abertura de um espaço de diálogo entre as pessoas. Tendo como principal experiência a circulação presencial pelas comunidades, buscamos construir a possibilidade de diálogo através dos textos e imagens que compõem todos os materiais. Cientes das limitações e potências do meio, incentivamos você à jogar, compartilhar ideias e conversar sobre sua experiência com outras pessoas.
Por todos estes pontos, compreendemos esta curadoria como uma oportunidade ímpar. Trata-se de uma oportunidade que busca somar junto à tantas outras iniciativas não hegemônicas já existentes. Ações que há muito tempo buscam compreender a cena brasileira como um espaço mais plural, pautado em cooperação, inclusão e diversidade.
Bem vinda, bem vindo e bem vinde ao Lugar de Jogo!
Jaderson Souza e Tainá Felix
Game e Arte
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